As serpentes são mais rápidas e melhores: como um grupo de répteis escamados e sem patas tirou a sorte grande na evolução

fevereiro 22, 2024
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A sucuri, ou Eunectes, é uma cobra aquática e a maior e mais pesada cobra do mundo. Pode atingir mais de 10 m e se alimenta de mamíferos de grande porte, incluindo capivaras, que podem pesar mais de 60 kg. Crédito: Guarino Colli, UnB
A sucuri, ou Eunectes, é uma cobra aquática e a maior e mais pesada cobra do mundo. Pode atingir mais de 10 m e se alimenta de mamíferos de grande porte, incluindo capivaras, que podem pesar mais de 60 kg. Crédito: Guarino Colli, UnB

ANN ARBOR—Há mais de 100 milhões de anos, os ancestrais das primeiras serpentes eram pequenos lagartos que viviam à sombra dos dinossauros. Então, numa explosão de inovação em forma e função, eles desenvolveram corpos sem patas que podiam deslizar pelo chão, sistemas sensoriais altamente sofisticados—para encontrar e rastrear presas—e crânios flexíveis que os permitiram engolir animais de grande porte.

Visualização de dietas para 1.314 espécies de lagartos e cobras. Cada ponto representa uma espécie individual: lagartos = azuis, cobras = vermelhos. Pontos mais próximos indicam maior similaridade nas dietas. O tamanho de cada ponto é proporcional à diversidade de tipos de alimentos que cada espécie irá consumir: Pequenos círculos indicam dietas altamente especializadas, por exemplo. Lagartos e cobras apresentam pouca sobreposição: os lagartos se alimentam principalmente de insetos, aranhas e outros artrópodes. As cobras geralmente comem sapos, peixes, mamíferos, pássaros e outros vertebrados. Do título et al. em Ciências, Fev. 2024
Visualização de dietas para 1.314 espécies de lagartos e cobras. Cada ponto representa uma espécie individual: lagartos = azuis, cobras = vermelhos. Pontos mais próximos indicam maior similaridade nas dietas. O tamanho de cada ponto é proporcional à diversidade de tipos de alimentos que cada espécie irá consumir: Pequenos círculos indicam dietas altamente especializadas, por exemplo. Lagartos e cobras apresentam pouca sobreposição: os lagartos se alimentam principalmente de insetos, aranhas e outros artrópodes. As cobras geralmente comem sapos, peixes, mamíferos, pássaros e outros vertebrados. Do título et al. em Ciências, Fev. 2024

Estas mudanças prepararam o terreno para a espetacular diversificação das serpentes ao longo dos últimos 66 milhões de anos, permitindo-as explorar rapidamente novas oportunidades que surgiram após o impacto de um asteroide que extinguiu cerca de três quartos das espécies vegetais e animais do planeta, incluindo a maioria das espécies de dinossauros.

Mas o que será que desencadeou a explosão evolutiva da diversidade de serpentes—um fenômeno conhecido como radiação adaptativa—que deu origem a quase 4.000 espécies vivas e fez das serpentes uma das maiores histórias de sucesso da evolução?

Um novo e grande estudo realizado por uma equipe internacional liderada por biólogos da Universidade de Michigan, Universidade de Brasília e Universidade Federal da Paraíba, entre outras, sugere que a resposta é a velocidade da evolução.

As serpentes evoluíram até três vezes mais rápido que os lagartos, com grandes mudanças nas características associadas à alimentação, locomoção e percepção sensorial, de acordo com o estudo agendado para publicação online em 22 de fevereiro na revista Science.

“Fundamentalmente, este estudo é sobre o que produz um vencedor evolutivo. Descobrimos que as serpentes têm evoluído mais rapidamente do que os lagartos em alguns aspectos importantes, e esta velocidade de evolução as permitiu tirar partido de novas oportunidades que outros lagartos não conseguiram,” disse o biólogo evolucionista da Universidade de Michigan, Daniel Rabosky, autor sênior do estudo da Science.

“As serpentes evoluíram mais rápido e—ousamos dizer—melhor do que alguns outros grupos. Elas são versáteis e flexíveis e capazes de se especializar em presas que outros grupos não podem usar,” disse Rabosky, professor do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da U-M.

Liotyphlops ternetzii é uma pequena cobra subterrânea que se alimenta exclusivamente de pequenos insetos, principalmente larvas de formigas e cupins (este é um adulto). Possui muitas características que lembram o ancestral da cobra, que provavelmente era um lagarto subterrâneo alongado. O Brasil possui a maior diversidade de cobras Liotyphlops do mundo. Crédito: Guarino Colli, UnB
Liotyphlops ternetzii é uma pequena cobra subterrânea que se alimenta exclusivamente de pequenos insetos, principalmente larvas de formigas e cupins (este é um adulto). Possui muitas características que lembram o ancestral da cobra, que provavelmente era um lagarto subterrâneo alongado. O Brasil possui a maior diversidade de cobras Liotyphlops do mundo. Crédito: Guarino Colli, UnB

Para o estudo, os pesquisadores geraram a maior e mais abrangente árvore genealógica de lagartos e serpentes, sequenciando genomas parciais de quase 1.000 espécies. Além disso, eles compilaram um enorme conjunto de dados sobre a dieta desses animais, examinando os conteúdos estomacais de dezenas de milhares de espécimes preservados em museus.

Uma boa esmeralda (Corallus batesii) na Floresta Amazônica, um predador especializado de pequenos mamíferos. Crédito da foto: Tim Colston, Universidade de Porto Rico-Mayaguez
Uma boa esmeralda (Corallus batesii) na Floresta Amazônica, um predador especializado de pequenos mamíferos. Crédito da foto: Tim Colston, Universidade de Porto Rico-Mayaguez

Eles analisaram essa montanha de dados com sofisticados modelos matemáticos e estatísticos, apoiados por enorme poder computacional, para analisar a história da evolução de lagartos e serpentes ao longo do tempo geológico e entender como várias características, como a falta de membros, evoluíram.

Essa abordagem multifacetada revelou que, embora outros répteis tenham desenvolvido muitas características semelhantes às das serpentes—25 grupos diferentes de lagartos também perderam os seus membros, por exemplo—apenas as serpentes experimentaram este nível de diversificação explosiva.

Veja a sucuri—serpente semi-aquática do Brasil, por exemplo.

A sucuri, nome popular dado às serpentes do gênero “Eunectes,” pode ultrapassar os 10 metros de comprimento e se alimenta de presas tão grandes, quanto uma capivara, o maior roedor vivente, ou até mesmo um veado.

“Com a cabeça pequena, mas um crânio flexível, a sucuri consegue engolir presas enormes,” disse Guarino Colli, professor titular do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília. “Ela é um exemplo extremo dessa capacidade incrível de adaptação, e é um dos fatores responsáveis pelo sucesso evolutivo desse grupo.”

A tomografia computadorizada de uma cobra com olho de gato (Leptodeira septentrionalis) revela um sapo (esqueleto azul) em seu trato digestivo. Espécime de cobra do Museu de Zoologia da U-M. Crédito da imagem: Ramon Nagesan, Museu de Zoologia da Universidade de Michigan
A tomografia computadorizada de uma cobra com olho de gato (Leptodeira septentrionalis) revela um sapo (esqueleto azul) em seu trato digestivo. Espécime de cobra do Museu de Zoologia da U-M. Crédito da imagem: Ramon Nagesan, Museu de Zoologia da Universidade de Michigan

Em um extremo oposto, ainda no Brasil, está um grupo relativamente primitivo de serpentes, composto por espécies que vivem enterradas no solo. Bem pequenas, essas serpentes se parecem com minhocas, e se alimentam exclusivamente de cupins e formigas.

“Quando a gente compara esses dois extremos, vê o quão diverso é o grupo de serpentes no Brasil,” Colli disse. “Aí entendemos como esses animais conseguem sobreviver em ambientes tão contrastantes e evoluir rapidamente.”

ma cobra arborícola de cabeça romba (Imantodes inornatus) comendo um lote de ovos de perereca. Crédito da imagem: John David Curlis, Universidade de Michigan
ma cobra arborícola de cabeça romba (Imantodes inornatus) comendo um lote de ovos de perereca. Crédito da imagem: John David Curlis, Universidade de Michigan

Os autores do estudo da Science se referem a este evento na história evolutiva como uma singularidade macroevolutiva com causas “desconhecidas e talvez incognoscíveis.”

Uma singularidade macroevolutiva pode ser vista como uma mudança repentina para uma engrenagem evolutiva superior, e os biólogos suspeitam que essas explosões aconteceram repetidamente ao longo da história da vida na Terra. O surgimento repentino e subsequente domínio das plantas com flores—angiospermas—é outro exemplo.

No caso das serpentes, a singularidade começou com a aquisição quase simultânea—sob uma perspectiva evolutiva—de corpos alongados sem patas, sistemas avançados de detecção química e crânios flexíveis.

Essas mudanças cruciais permitiram que as serpentes, como grupo, perseguissem uma gama muito mais ampla de tipos de presas, ao mesmo tempo que permitiram que espécies individuais evoluíssem para uma especialização alimentar extrema.

Hoje existem serpentes que atacam com veneno letal, pítons gigantes que comprimem suas presas, escavadores com focinho em forma de pá que caçam escorpiões do deserto, serpentes arbóreas delgadas chamadas “dormideiras” que atacam caracóis e ovos de pererecas bem acima do solo, outras com cauda em remo, serpentes marinhas que sondam as fendas dos recifes em busca de ovas de peixes e enguias, e muito mais.

Uma cabeça de cobra (Agkistrodon contortrix). Esta espécie venenosa ocorre no sul dos Estados Unidos e se alimenta de uma variedade de presas vertebradas. Crédito da foto: Alison Davis Rabosky, Universidade de Michigan
Uma cabeça de cobra (Agkistrodon contortrix). Esta espécie venenosa ocorre no sul dos Estados Unidos e se alimenta de uma variedade de presas vertebradas. Crédito da foto: Alison Davis Rabosky, Universidade de Michigan

“Um dos nossos principais resultados é que as serpentes passaram por uma mudança profunda na ecologia alimentar que as separa completamente de outros répteis,” disse Rabosky. “Se existe um animal que pode ser comido, é provável que alguma serpente, em algum lugar, tenha desenvolvido a capacidade de comê-lo.”

Para o estudo, os pesquisadores analisaram as preferências alimentares das serpentes com observações de campo e registros do conteúdo estomacal de mais de 60 mil espécimes de serpentes e lagartos, principalmente de museus de história natural. Os museus contribuintes incluíram o Museu de Zoologia da Universidade de Michigan, que abriga a maior coleção de pesquisa de espécimes de serpentes do mundo, e a Coleção Herpetológica da Universidade de Brasília, uma das maiores do país.

Os 20 autores do estudo são de universidades e museus dos Estados Unidos, Brasil, Reino Unido, Austrália e Finlândia.

O estudo foi apoiado por várias agências de financiamento, incluindo vários subsídios da Fundação Nacional de Ciência dos EUA. Mais informações, incluindo uma cópia do artigo, estão disponíveis para repórteres registrados em https://www.eurekalert.org/press/scipak.