Palcos “derrubam” grades das prisões em todo o mundo, capacitam artistas encarcerados
Dez anos de viagens visitando e pesquisando prisões ao redor do mundo. A professora da Universidade de Michigan, Ashley Lucas, passou a última década imersa em aprender e compreender o trabalho e o impacto das companhias de teatro nas prisões no Brasil, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, África do Sul, Uruguai, Irlanda, Reino Unido e muitos estados nos Estados Unidos.
Todas essas viagens para tentar compreender o que o teatro pode realizar, além do entretenimento, em ambientes não tradicionais e por que as pessoas se envolvem em práticas performáticas nesses contextos desafiadores.
“Por que as pessoas na prisão fazem teatro?”, perguntou Lucas. “Por que essa atividade se torna tão importante para todas as pessoas envolvidas?”
Lucas responde a essas e muitas outras perguntas por meio de estudos de caso e depoimentos de artistas encarcerados em seu novo livro—Teatro em Prisões e a Crise Global do Encarceramento—agora também em português, pela Editora Hucitec.
“Este é um dos únicos livros com escopo global falando sobre qualquer forma de arte de prisão”, disse Lucas. “Tive o privilégio único de visitar tantos países diferentes, tantas companhias de teatro diferentes e ver a gama completa do que as pessoas podem fazer com o teatro dentro dessas instalações e por que isso é importante para elas.”
Conversamos com Lucas sobre sua jornada para montar este livro de dez capítulos, que discute profundamente uma série de práticas de performance ligadas ao encarceramento. O trabalho de Lucas examina as maneiras pelas quais os praticantes das artes e pessoas encarceradas usam o teatro como um meio para construir comunidades, adquirir habilidades profissionais, criar mudanças sociais e manter a esperança.
O que há de diferente neste livro em relação aos livros anteriores sobre teatro na prisão?
A diferença é que a maioria das pessoas que escreve esses livros são pessoas como eu, pessoas que dirigem companhias de teatro em prisões, pessoas que estudaram esse trabalho como acadêmicos. E a maioria desses livros foi escrita a partir da perspectiva de pessoas como eu, dizendo: “É por isso que pensamos ser uma boa ideia entrar nas prisões e tornar o teatro disponível para pessoas encarceradas.” No meu livro, o que eu estava realmente tentando descobrir como pesquisador era: “Por que as pessoas na prisão fazem teatro?” Tenho conhecido muitas pessoas que estavam nas prisões e viam o teatro como uma parte vital de suas vidas, como algo que realmente precisavam fazer para passar a semana, para melhorar sua vida e as das pessoas ao seu redor naquela prisão, e se conectar com suas famílias.
E você obteve as respostas que procurava após esta jornada de pesquisa de 10 anos?
Sim! Na maioria das vezes, se você oferecer algo que soe vagamente divertido em uma prisão, todo mundo quer participar. Se há pessoas legais, principalmente pessoas do mundo exterior, que não trabalham para a prisão, é realmente emocionante poder vê-las. É ótimo ver pessoas do sexo oposto. Então, se você está em uma prisão feminina e não vê um homem há muito tempo, isso é realmente emocionante. Se você está em uma prisão masculina e não vê mulheres há muito tempo, isso é emocionante. Mas quando você realmente “encontra” o teatro, é tão diferente de tudo que acontece em uma prisão.
Normalmente, [um voluntário de um programa] entra na prisão e diz: “Eu sei como você deve se comportar. Sei como tornar sua vida melhor. Você precisa parar de beber, parar de usar substâncias, aprender a administrar seu tempo, sua vida e suas emoções.” No teatro, entramos e dizemos o contrário. Perguntamos: “O que é importante para você?” “Aqui está um texto que outra pessoa escreveu”, “Este personagem é um ser humano com defeitos e por isso é tão interessante”, “Essa pessoa é interessante para você?”, “O que você traria para interpretar este personagem realmente famoso de forma diferente do que qualquer outra pessoa no mundo já interpretou?”. Essa é a magia do teatro, que é sempre muito pessoal para os atores e para o público.
Então conhecer novas pessoas pode ser um gancho, mas há muito mais do que isso, correto?
De fato. Na prisão, não devemos dar coisas pessoais às pessoas. Devemos achatar todo mundo e fazê-los usar as mesmas coisas. Devemos fazer com que comam a mesma coisa, sigam a mesma rotina, dizer que eles não são especiais. Também ensinamos as pessoas a guardarem seus sentimentos para si mesmas e não abrirem seus corações, suas mentes, não compartilharem sobre quem são e o que acreditam no mundo.
O teatro te “bagunça” totalmente. O teatro diz: “Me dê sua alma e aprenda que é seguro se doar emocionalmente, aprenda que é seguro se conectar com outras pessoas, aprenda que é seguro mostrar quem você realmente é, podemos nos apaixonar pela pessoa que é.” Não estou falando de romance. Estou apenas falando sobre a vida, podemos ver a beleza de sua humanidade se você nos deixar entrar.
No teatro, nós nos expomos de várias maneiras, e essa exposição não é usada contra as pessoas, na maior parte das vezes. Houveram alguns momentos em que as coisas deram errado, mas a maioria das experiências que as pessoas encarceradas me contaram foi sobre poder ser algo diferente do maior erro que já fizeram. O mundo tende a presumir que tudo o que importa sobre uma pessoa encarcerada é o motivo por que ela está na prisão, e o teatro oferece às pessoas uma nova maneira de se apresentar aos outros.
Uma vez que uma pessoa encarcerada é fisgada pelo teatro, como é seu envolvimento?
É claro que depende de cada pessoa. Para muitas delas, o teatro dá uma disciplina que também ensina um monte de outras coisas. [Normalmente] a maneira como disciplinamos as pessoas na prisão é dizendo que você não tem escolha. Você vai acordar nessa hora, vai para este trabalho. Você vai fazer o que te obrigamos a fazer. No teatro, você tem que se comprometer. Você tem que estar muito motivado para aparecer nos ensaios e memorizar suas falas, se doar emocionalmente, se expor e assumir riscos. Seu nível de comprometimento afeta profundamente todas as pessoas ao seu redor.
No geral, na prisão sempre dizemos, “Você está por sua conta”, não importa o que você esteja fazendo, saiba que está fazendo apenas para você. E quando você está em uma peça, todo o elenco depende de você. Se algo acontece com um desses membros do elenco—se eles forem transferidos para uma prisão diferente, se eles são soltos, se têm um problema médico, se são punidos e não têm mais permissão para fazer parte da peça—todo o elenco é reorientado. Eles precisam se reestruturar para continuar a cuidar uns dos outros e da obra de arte que estão criando.
Então, você está pedindo a essas pessoas que normalmente se isolam de tudo, que de repente se comprometam com o teatro e tudo que ele representa. Uma comunidade artística não pode funcionar sem a participação plena de todos os seus membros. E isso faz com que as pessoas percebam que suas ações têm impacto sobre os outros. Que eles têm algo a contribuir, são importantes, são capazes. E podem ter um impacto real na formação de algo que pertence a ele próprio, mas também pertence igualmente aos outros membros da trupe, e em certa medida, ao público, porque o público se torna uma peça em toda essa troca. Todas essas peças são essenciais. O teatro é uma maneira da comunidade carcerária se conectar com as pessoas que amam e com o mundo exterior, mesmo que essas pessoas nunca cheguem a ver a peça.
Todos podem se tornar atores ou atrizes? A arte é para todos?
Acredito profundamente que qualquer pessoa no mundo pode participar das artes e se tornar um artista. Nem todos atingiremos os níveis mais altos da realização artística, mas você pode entrar no processo. Quando você o faz, quando você realmente se compromete a fazer arte, é assustador.
O teatro é super complexo, e há uma tonelada de novas experiências envolvidas. Ele abre sua mente e seu coração. Ele conecta você a outras pessoas. Realmente revoluciona sua experiência no mundo, não importa onde você esteja. Acho que o teatro é bom para todos nós, não apenas para as pessoas na prisão. Mas as pessoas na prisão têm tantas outras coisas negadas que é um ótimo lugar para perceber por que o teatro pode ser tão importante.
Teatro em Prisões e a Crise Global do Encarceramento, da Editora Hucitec, está em pré-venda.