Estudantes da U-M trabalham em estreita colaboração com famílias brasileiras de baixa renda

Story by Fernanda Pires | Photos by Austin Thomason, Michigan Photography | Video by Jeremy Marble | English

SÃO PAULO—Mãos no mesmo ritmo, trabalhando juntas. Ao misturar o solo, peneirar e preparar a terra. Para fabricar as mesas das mudas. Para semear. É outono no Brasil e o clima é ideal para o mutirão comunitário na zona leste de São Paulo.

Dezenas de pessoas se reúnem no início da manhã no Parque São Rafael para a construção de um viveiro de árvores para ajudar a preservar uma área protegida de 5.200 metros quadrados, que vai garantir o bem-estar de cerca de 700 famílias de baixa renda que vão morar nos condomínios.

Os alunos de pós-graduação da Universidade de Michigan, Roland Amartefio, Kira Barsten e Shanea Condon, passam horas no galpão local ajudando a construir as mesas. Eles fazem parte de um projeto da Taubman College of Architecture and Urban Planning que trabalha com comunidades de baixa renda para combater o grave problema de déficit habitacional no Brasil e promover a gestão ambiental. Os brasileiros José Aguiar e sua esposa, Lídia, lideram a linha de produção.

Do outro lado da rua, a engenheira florestal Bárbara Junqueira dos Santos orienta todos os participantes e parceiros da U-M no plantio das sementes de árvores nativas, como Pau-Brasil, Cambuci, Araçá Roxo e Gabiroba. Ela explica todos os passos—um por um—para que as espécies possam germinar com sucesso.

“”Um dia, você poderá abrir a janela do seu apartamento, olhar para a floresta e dizer aos seus filhos: eu plantei aquelas árvores. Este é um projeto muito diferente, parte de um esforço coletivo para recuperar e proteger essa área de preservação ambiental que vai garantir o microclima do bairro.”

Barbara Junqueira dos Santos

Junqueira dos Santos explica que o projeto é um processo pedagógico e educativo para as três comunidades—Mutirões Dorothy Stang, Jerônimo Alves e Martin Luther King, membros do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste 1

“É essencial que as pessoas que vão viver aqui entendam sua importância”, disse ela. “Esta APP, ou Área de Preservação Permanente, servirá como um corredor ecológico que vai conectá-la a outras florestas próximas. Vai ajudar no processo cíclico e genético das espécies daqui, como aves e pequenos mamíferos, auxiliando o ecossistema como um todo”.

Após instruções, os voluntários da comunidade e os outros estudantes da U-M, Fanta Condé e Bryant Hepp, colocaram as mãos na terra e começaram a plantar as sementes. O plano é construir um espaço verde dinâmico com 1.000 árvores em várias fases nos próximos 12 meses.

O viveiro, com capacidade para 5.000 sementes, vai doar amostras para outros projetos nascentes, criando uma rede sustentável de abastecimento de plantas para APPs, atendendo a outros conjuntos habitacionais de baixa renda e parques em bairros carentes da periferia da zona leste de São Paulo.

“É muito bom fazer parte desse projeto desde o início e ver todas essas fases dando certo,” disse Hepp, estudante de pós-graduação em serviço social e planejamento urbano e regional. “Estamos trabalhando nas bases de um projeto que terá um impacto duradouro, mesmo que não seja visível agora.

“Trabalhando de perto com a comunidade, estamos tentando descobrir maneiras de tornar a área de proteção permanente utilizável pelas pessoas, para que elas possam usufruir dessa área, interagir com as árvores e se sentirem donas do espaço.”

A equipe de alunos de pós-graduação é liderada pela brasileira Ana Paula Pimentel Walker, professora associada do Taubman College.

“A questão aqui é que as comunidades de baixa renda—geralmente as comunidades de cor—sofrem com as desigualdades na cidade”, disse ela. “Seu direito à moradia verde e saudável não é cumprido. Elas estão expostas a contaminantes. Elas têm infraestrutura precária e vivem em casas precárias em São Paulo e em diferentes partes do mundo. Nossos alunos da U-M estão aprendendo a enfrentar esses desafios.”

Jerônimo Alves: Homenagem a um líder

Futura moradora, Alessandra Alves dos Santos, se emociona e não consegue conter as lágrimas de alegria ao plantar as primeiras sementes de árvores no viveiro.

Alessandra Alves dos Santos
Alessandra Alves dos Santos

Um dos oito prédios a serem construídos nas três comunidades já leva o nome de seu pai, Jerônimo Alves, ex-líder comunitário e cofundador dos movimentos de moradia na periferia leste de São Paulo. Ele morreu há 16 anos, deixando seu legado para sua filha, que agora é uma líder ativa.

“Um dia, eu, meu marido e meus dois filhos vamos morar em uma das unidades daqui”, disse Alves dos Santos. “Estou muito orgulhosa de ter trabalhado bem perto da minha comunidade para melhorar esta área nativa, tanto para nossos filhos quanto para gerações vindouras. Meu pai ficaria emocionado.”

Há cerca de 20 anos, Alves dos Santos está envolvida com vários parceiros brasileiros para construir coletivamente mais de 100.000 casas a preços acessíveis no Brasil, via autogestão.

Defendida pelos movimentos de moradia, a autogestão é um método alternativo de produção de moradias populares no Brasil que é produzido e governado por decisões democráticas entre os moradores.

Lutas

Segundo Pimentel Walker, apesar do sucesso da autogestão habitacional, o movimento luta para inovar nas áreas de sustentabilidade ambiental e ação climática devido ao padrão histórico e persistente de racismo ambiental e injustiças climáticas.

A área disponível para a produção habitacional de baixa renda está em locais abandonados, contaminados ou em áreas ambientalmente sensíveis—e geralmente ambos. Ela explica que essas comunidades se tornam mais reativas do que proativas na integração de áreas com corpos d’agua e zonas verdes conectadas para proteger uma à outra, dadas as restrições financeiras. Depois de cumprirem os caros requisitos legais para o plantio de árvores, nada resta.

É por isso que, ao longo dos anos, Pimentel Walker tem trabalhado com seus alunos de pós-graduação da U-M em projetos e propostas que visam mudar essa realidade. Seus cursos na Escola Taubman alinham o aprendizado em sala de aula com as necessidades, em tempo real, dessas comunidades desprivilegiadas.

O trabalho deste ano, “Greening Low-Income, Self-Managed Housing Projects in Brazil“, recebeu financiamento de US$ 40.000 por meio do concurso Dow Distinguished Awards, projetado para promover a colaboração interdisciplinar e o aprendizado engajado em nível de pós-graduação.

“Mais do que unir forças no projeto do viveiro, este ano estamos trabalhando com nossos parceiros brasileiros para melhorar a saúde ambiental e promover a ação climática, ao mesmo tempo em que tentamos diminuir os custos de conformidade ambiental”, disse Pimentel Walker.

“Esses grupos locais construíram, ao longo de gerações, um conhecimento profundo sobre as cidades (onde vivem) e combinar esse conhecimento com a formação profissional dos nossos alunos é mutuamente benéfico. Assim, avançaremos os dois: a luta por moradia adequada e as carreiras de nossos alunos.”

Aplicações globais

Natural do Rio Grande do Sul, Pimentel Walker traz alunos da U-M ao Brasil desde 2015. Seus alunos trabalharam em diferentes estados e projetos, sempre com foco em pesquisa e ação participativa.

“É uma das minhas atividades favoritas como docente, principalmente pela oportunidade de coproduzir estratégias que vão avançar o direito à cidade e à moradia,” disse. “Não importa se os alunos de Michigan vão ou não trabalhar em seus estados de origem, em Ann Arbor ou em São Paulo. Eles podem aplicar o que aprendem sobre planejamento participativo durante essas viagens em qualquer lugar do mundo.”

Shanea Condon

“Nosso tempo com o MST em São Paulo foi um exemplo brilhante, mais do que qualquer livro ou teoria poderia explicar, de como as pessoas podem se tornar poderosas quando se unem para lutar por uma vida digna, projetada por todas e gerenciada coletivamente. Foi empoderador ver esse trabalho coletivo, onde a comunidade pensa criticamente e merece uma moradia digna.

“Cada pessoa tem uma habilidade, uma conexão ou conhecimento para compartilhar que contribui para o objetivo maior. O MST foi muito gentil em abrir suas portas e braços (literalmente) para o nosso grupo. Apesar das barreiras linguísticas, foi tão fácil ver—e sentir—a paixão, orgulho e persistência que eles têm no trabalho completo e no futuro.”

Pimentel Walker explicou que seu trabalho ensina através da cooperação e da coprodução.

“Eu e meus alunos ganhamos e crescemos ao colaborar com associações de moradores, mutirões, favelas e ocupações, e, juntos, tentamos construir uma visão de cidade que incorpore as necessidades e realidades de seusterritórios,” disse. “É um terreno que, se é público, fica próximo a áreas ecologicamente sensíveis. Se é privado, é o que sobrou de empreendimentos imobiliários com fins lucrativos da cidade, por causa das regulamentações ambientais caras.”

Kira Barsten, da U-M, foca seus estudos de pós-graduação em sustentabilidade e foi atraída pelo programa da Taubman por causa do trabalho de Pimentel Walker.

Kira Barsten

“Eu queria entender como podemos usar o envolvimento da comunidade e o planejamento participativo como ferramentas para construir cidades mais equitativas, resilientes e sustentáveis,” disse ela. “E fazer esse trabalho baseado em decisões vindas da própria comunidade, e não apenas das autoridades e políticos, que geralmente são os únicos à frente de decisões que podem impactar negativamente os moradores mais marginalizados.”

Aulas de autogestão

Quando você entra em um dos apartamentos em construção, de 58 metros quadrados, do complexo Alexios Jafet, é difícil acreditar que os futuros moradores são os próprios construtores. Localizado no bairro Jaraguá, em São Paulo, o empreendimento terá mais de 1.100 unidades e será o maior conjunto habitacional autogestionário da América do Sul.

Além da parceria com as comunidades de São Rafael, Pimentel Walker visitou outros projetos em São Paulo para mostrar a seus alunos como é o dia a dia dessas obras autogeridas e quais são os desafios na fase de construção. Para ela, essas visitas mostram aos estudantes a mentalidade de ‘mãos à obra’ necessária para avançar em projetos auto gerenciados.

Fanta Condé

“Uma das grandes lições do meu tempo em São Paulo foi entender a eficácia, o poder da ajuda mútua e da implementação de metas em comum, para o benefício da comunidade. Ficou claro que a partir de “todas as mãos trabalhando juntas” e da meta de “aprender todas as habilidades” adotadas por nossos parceiros que muitos, avançam em direção à autossuficiência, dignidade e construção do poder comunitário.

As habilidades estratégicas multifacetadas e a coordenação de sistemas, como a construção do movimento ideológico, refletem na capacidade de nossos parceiros de idealizar, inovar e cultivar as condições necessárias para o desenvolvimento transformador da moradia e infraestrutura. Embora de testemunhar o peso que eles carregam nos ombros, foi inspirador ver a fé que a comunidade mantém para alcançar seus goals.”

“O Alexios Jafet tem 15 arranha-céus e mostra o poder dos movimentos sociais para mobilizar e alcançar mudanças políticas para melhorar a vida dos residentes,” disse Pimentel Walker. “Através de processos conduzidos pelos moradores, os futuros proprietários decidem sobre os ‘layouts’ das unidades, materiais que compram e todos os planejamentos para melhores condições de moradia.”

A líder comunitária Vera Eunice Da Silva, da Associação dos Trabalhadores Sem Terra das Zonas Oeste e Noroeste, mora em um prédio construído por autogestão há 25 anos, e sua comunidade ainda trabalha coletivamente para manter a qualidade de vida.

“O objetivo do movimento não é apenas dar a chave das casas,” disse ela. “É capacitação. Se trata de empoderamento. Mesmo depois de conseguirem suas casas, as famílias continuam trabalhando juntas, podem administrar o condomínio e melhorar as redondezas do bairro.”

As mulheres representam cerca de 80% das pessoas em cargos de liderança em projetos de autogestão, como no complexo Alexios Jafet, e na segurança habitacional intergeracional.

“Foi incrível aprender como essas comunidades não aceitam o não como resposta e o poder do seu trabalho coletivo,” disse Barsten, da U-M. “Ver as pessoas e as famílias decidindo juntas e seguindo em frente. Elas não estão esperando que a cidade, ou qualquer autoridade, diga como algo deve ser feito. É incrível testemunhar a força e o poder absolutos desses movimentos sociais.”

Continuidade e solidez

Até o final de setembro, 51 famílias da Ocupação Anchieta, um assentamento de oito anos também em São Paulo, deixarão seus barracos construídos com materiais descartados e se mudarão para novas casas. Eles moram em condições precárias e inseguras, em terrenos que podem inundar rapidamente, em encostas íngremes e perigosas.

As novas unidades de um cômodo, com cerca de 20 metros quadrados, serão construídas em alvenaria com base sólida—para dar suporte à construção de andares adicionais—e terão banheiro. Cada um custa 2.500 reais, cerca de 500 dólares americanos.

A associação de moradores, em colaboração com a assessoria técnica ONG Peabiru e uma extensa rede de colaboradores, está construindo todas as casas.

“Além de pagar (um terço) do custo da casa, todas as famílias trabalham cerca de 12 horas por semana em um esforço coletivo para reduzir os custos trabalhistas,” disse Letícia Souza dos Santos, líder comunitária, que tem trabalhado de perto no projeto de urbanização do bairro para realocar famílias para seus lotes definitivos, abrir ruas e buscar alternativas realistas para abrigar sua família e comunidade.

Leticia Souza dos Santos
Leticia Souza dos Santos

“Além de nos ajudar no mapeamento aéreo e na análise de nossa água e solo, a equipe da U-M nos deu apoio financeiro para construir nosso polo cultural que atende cerca de 2.000 crianças que vivem aqui. Hoje, somos 1.079 famílias.”

Desde 2016, Pimentel Walker e sua colaboradora, professora associada María Arquero de Alarcón, trazem equipes multidisciplinares da U-M para entender o cenário, as regulamentações ambientais e as barreiras da comunidade para adquirir segurança e infraestrutura permanentes.

Roland Amarteifio, recém formado pela U-M, trabalhou no projeto de São Paulo por mais de um ano antes de viajar com o grupo. Ele também apoia e acredita no planejamento participativo e concentrou seu programa de mestrado na pesquisa sobre a força dos engajamentos comunitários.

“Ao me preparar para esta viagem e estando aqui, aprendi que é necessário muito trabalho na construção de uma comunidade,” ele disse. “Estou aprendendo a incorporar diferentes formas de trabalhar, de partes do mundo, diferentes ideologias e uni-las para criar projetos personalizados, produtivos e com propósitos.

Para Amartefio, a parceria com as comunidades do Parque São Rafael, Alexios Jafet e Anchieta o fez entender que “a ideia de trabalhar com pessoas e não trabalhar para pessoas” pode ser mais produtiva, em planejamento urbano.

Roland Amarteifio

“Agora estou certo de que uma abordagem hierárquica, de cima para baixo, não funciona. Colaborar com as pessoas, ouvir suas ideias, sonhos e esperanças e incorporá-los aos projetos é algo que geralmente dá certo. Espero poder fazer isso na cidade de Detroit , onde trabalho agora, porque muitas pessoas se sentem sem voz lá.”

“A comunidade é a parte mais importante e vital de um projeto que visa ajudar as pessoas a melhorar suas vidas e ter mais acesso aos recursos,” disse Amartefio. “Quando trabalhamos juntos, não apenas entendemos e temos empatia um pelo outro, mas também aprendemos a trabalhar cooperativamente para impulsionar o progresso. Estou recebendo e aprendendo mais com essa parceria do que podia imaginar.”