Solo sagrado: saindo do mapa e entrando nas praias, falésias da Normandia
Solo sagrado: saindo do mapa e entrando nas praias, falésias da Normandia
Inédita, a viagem é uma ferramenta para ajudar os candidatos do U-M ROTC a processar a realidade do Dia D
Story by Fernanda Pires, photos and video by Jeremy Marble, page layout by Nicole Smith
NORMANDIA, França—À medida que os estudantes se aproximam da beirada do penhasco Pointe du Hoc, na costa noroeste da Normandia, eles parecem extasiados.
Eles já estudaram sobre a Segunda Guerra Mundial e aprenderam como os soldados do exército dos Estados Unidos invadiram a praia de Omaha em 6 de junho de 1944, escalando os enormes penhascos sob o fogo cruzado do inimigo. E eles também conhecem a história do “D-day,” ou Dia D, a maior e mais sangrenta operação anfíbia, ponto de virada para as forças aliadas.
Mas quase oito décadas após a invasão, os estudantes estão aprendendo algo totalmente novo sobre a experiência da guerra ao embarcarem em uma jornada sem precedentes com o Corpo de Treinamento de Oficiais da Reserva da Universidade de Michigan (ROTC).
“Você lê sobre a invasão dos Aliados nos livros e aprende detalhes sobre esta operação específica, sobre os altos penhascos, mas não pensa muito nas dimensões,” disse o cadete do Exército Alexis Gonzalez, um dos 30 aspirantes que exploraram a Normandia na primavera norte-americana, como parte de uma viagem exclusiva da equipe militar.
“Uma vez que você pisa aqui, e vê—pessoalmente—as massas dos penhascos, sua altura e quão difícil é o terreno difícil que os soldados tiveram que escalar; é um choque.”
Por um semestre, antes da viagem à França, Gonzalez estudou sobre a operação Pointe du Hoc e as batalhas que aconteceram na redondeza, mas admite que ficou bastante surpreso quando visitou o local. Era uma manhã fria e ventosa. O céu estava azul com apenas algumas nuvens esparsas, permitindo uma visão perfeita das vastas falésias de 30 metros de altura, com uma vista para as estreitas praias francesas.
“Os soldados carregavam seus armamentos, e eles tinham que jogar a escada propelida nesses penhascos e escalar enquanto eram bombardeados pelas forças alemãs,” disse ele. “Na verdade, apenas escalar essas falésias em um dia normal parece difícil, imagine sendo atacado, ter uma metralhadora disparando contra você. Isso dá outra perspectiva sobre o que os rangers enfrentaram.”
Sem precedentes – antes e agora
Cercado por vários bunkers de concreto, Pointe du Hoc é um dos vários locais das batalhas simultâneas que ocorreram no Dia D. A operação naval, aérea e terrestre mais proeminente da história da humanidade reuniu forças aliadas dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e do Canadá.
E pela primeira vez, a U-M recrutou cadetes qualificados e aspirantes representando as unidades do Exército, Marinha e Força Aérea para visitar e treinar juntos nos históricos campos de batalha, monumentos e memoriais do norte da França. Todos os participantes são universitários do último ano que servirão nas forças armadas dos EUA como oficiais comissionados após se formarem na U-M.
“Esta é a primeira vez que as três forças se unem e estão em solo estrangeiro para treinar nossos futuros oficiais sobre o que significa ser militar, comandar e discutir as expectativas de liderança nas Forças Armadas dos EUA,” disse o Tenente Coronel Thomas Church, professor de ciência militar do Programa de Educação de Oficiais do Exército da U-M.
“A viagem à Normandia é exclusiva e inédita. Foi planejada sob medida para nossos futuros militares. Aqui, temos a capacidade única de ver o que aconteceu em grande escala, em uma operação que nunca havia sido feita antes. A operação D-Day mudou a perspectiva global do que os nossos militares fazem por nosso país e pela humanidade.”
Staff ride: uma prática ferramenta militar
Os staff rides (ou viagem de treinamentos) da equipe militar começaram nos anos 1,700, quando os alemães, sob o governo de Frederick, o Grande, enviavam oficiais para explorar os terrenos para entender melhor as suas condições e se preparar para uma batalha, disse Stephen Bourque, Professor Emérito de História da Escola de Estudos Militares Avançados (SAMS) do Exército dos EUA. Ele viajou com o grupo da U-M por ser especialista na Segunda Guerra Mundial.
Através de um staff ride—uma análise sistemática de um local para aprender sobre o impacto da geografia, do clima e das interações humanas de importância histórica—os alunos do programa ROTC puderem compreender de forma mais clara, a complexidade da guerra e das interações caóticas dos seres humanos e suas máquinas, colidindo em um ambiente dinâmico de alta intensidade.
Nas falésias da Normandia e em outros locais relevantes ao dia da batalha, os alunos puderam “sair dos livros, dos mapas,” pisar no solo e percorrer os trajetos que os soldados fizeram no Dia D.
“É mais importante do que nunca que os estudantes de Michigan, que passarão parte de suas carreiras defendendo este país, tenham a oportunidade de aprender sobre a história, os principais locais e as batalhas, através de uma experiência internacional antes de sua nomeação e primeiro posto,” disse Valéria Bertacco, vice-reitora da U-M para a aprendizagem participativa.
“Nossa missão é fornecer a eles a melhor educação, experiências e treinamento para que possam estar preparados desempenharem da melhor forma possível.”
Prepare, depois embarque
Um staff ride é caracterizado por três fases essenciais e distintas: (1) o estudo preliminar sistemático de uma batalha ou evento selecionado; (2) uma extensa visita ao local onde essa batalha aconteceu; e (3) uma oportunidade de integrar as lições aprendidas de cada um.
“A fase preparatória é crucial porque os staff rides contam com o envolvimento máximo dos alunos para garantir reflexão, análise e discussão,” disse Bourque. “Eles fizeram muita pesquisa, escreveram um artigo e deram um briefing preparatório em Michigan. Agora, estamos aqui na fase de estudo de campo. Vamos para onde os eventos aconteceram para que eles possam mergulhar no ambiente.
“Isso dá aos alunos uma compreensão prática das diferenças entre os mapas, o que está escrito e como foi a realidade. Não há como comparar o que eles veem em um mapa com o que veem no exato local onde tudo aconteceu.”
Se formando em economia e estudos internacionais, Shane Yamco disse que cada local é “especial à sua maneira” e que todos contribuem para uma visão completa das invasões da Normandia.
“As histórias aqui são inspiradoras,” disse o Cadete do Exército Yamco. “São mais do que táticas, capacidades, armas, engajamentos e todas essas estratégias. É mais sobre pessoas, suas lideranças e como os comandantes inspiraram as tropas. As forças armadas, fundamentais para este lugar, são uma das maiores organizações de solidariedade, bravura e sacrifício.”
Cada parada: patriotismo, orgulho e tristeza
É um pouco antes das 9 horas da manhã no Cemitério Americano da Normandia quando o grupo de alunos da ROTC da U-M se prepara para hastear a bandeira americana. Eles já participaram dessas cerimônias várias vezes antes, mas nunca no primeiro cemitério americano em solo europeu, fundado em 8 de junho de 1944.
Aqui, as emoções são diferentes.
Poucos minutos antes da cerimônia da bandeira, vários cadetes respiram fundo, pensativos, diante dos quase 700.000m2 com 9.386 túmulos de militares americanos. A maioria deles perdeu a vida nos desembarques do Dia D e nas operações posteriores.
A grama verde brilha ao sol. Fileiras e mais fileiras de crucifixos brancos e estrelas de David perfeitamente alinhadas até perder de vista.
Silêncio absoluto.
“Que honra levantar a bandeira no Cemitério Americano na Normandia,” disse Anthony John Nasharr, estudante de engenharia mecânica e cadete do Exército. “É um lugar que nunca esquecerei devido ao significado dos campos de batalhas e ao cuidado e atenção com a memória dos que perderam a vida aqui.”
O cemitério fica no extremo norte de uma estrada de acesso a um penhasco com vista para a praia de Omaha, que na época era a mais restrita e com forte armamento. Quase 30.000 soldados americanos desembarcaram aqui—não sendo exatamente o local pretendido. Cerca de 2.500 deles perderam a vida, ficaram feridos, desapareceram ou foram feitos prisioneiros nas primeiras horas do ataque.
“Ter a oportunidade de estar onde eles estavam naquela época e ver exatamente o que eles passaram é algo que simplesmente não conseguimos entender em nenhum outro lugar”, disse David Walsh, estudante de ciências políticas e cadete da Força Aérea. “Além disso, é incrível saber que aqueles soldados—homens e mulheres um pouco mais velhos do que eu—se sacrificaram tanto.
“Minha experiência é moldada por saber que estou indo para uma área profissional onde muitas das pessoas que vou liderar podem ser mais jovens do que eu. Estou aprendendo aqui sobre o caráter dos soldados, quem eles eram e o que queriam fazer e nos dar. E espero poder fazer o mesmo se eu for chamado um dia.”
Para o capitão Scott Bunnay, professor clínico de ciência naval, a troca ao ensinar e aprender muda completamente quando você está no local, especialmente em lugares icônicos como as praias de Omaha ou Utah.
“Como oficiais militares, não operamos em uma sala de aula,” disse ele. “É importante ver o ambiente ao seu redor. Quando você toca na areia e sente o frio dessa região, fica mais fácil apresentar e discutir os desafios éticos enfrentados pelos militares norte-americanos no passado. Podemos debater o que eles enfrentaram, como responderam e como aplicar tudo isso às operações atuais e aos desafios que eles enfrentarão depois de se formarem na U-M como oficiais comissionados nas forças armadas dos EUA.”
A estudante de enfermagem Anna Schneider disse que esse staff ride mudou sua compreensão e desejo de aprender mais sobre história, guerras e interações humanas, como também sobre rápidas tomadas de decisão e lições do passado.
“Vou estar no Corpo de Enfermeiras do Exército e, às vezes, parece que todas essas táticas do Exército não se aplicam a mim,” disse ela. “Mas ao estar aqui na Normandia consigo me colocar no lugar das pessoas que serviram nas forças armadas, nas guerras mundiais.
“Vou trabalhar com muitos veteranos e pessoas que ainda estão ativas no serviço militar e sinto que essa experiência me ajudará a entender melhor de onde meus pacientes vêm e talvez algumas coisas pelas quais eles possam estar passando, como transtorno de estresse pós-traumático (ou TEPT)”
Uma parada na Ponte Pegasus, onde tudo deu certo
A Ponte Pegasus serviu como posição estratégica durante o Dia D. Uma pequena equipe de 181 homens, comandada pelo major John Howard, pousou em Ranville-Benouville em seis planadores de 28 homens cada. Com navegação perfeita e habilidade de pilotagem, os planadores pousaram no tempo certo e alvo perfeito a poucos metros um do outro.
A ponte então foi capturada após um intenso tiroteio de 10 minutos, seis horas antes dos outros desembarques nas praias. Noventa minutos depois de decolar da Inglaterra, Howard pode enviar as palavras de código “Ham and Jam”, indicando que os Aliados tinham capturado a ponte.
“Nas forças armadas, a tendência é se concentrar e falar sobre onde as coisas deram errado,” disse o coronel Cory Hollon, especialista em história que também se uniu ao time da U-M pela primeira vez. “Éssa operação é o que mais se aproxima de um ‘sucesso catastrófico.’ Tudo deu certo e eles alcançaram seu objetivo muito rapidamente.
“Esses locais que estamos visitando são muito importantes porque é um solo sagrado para os norte-americanos. É onde houve esse enorme sacrifício de sangue. Um tesouro para iniciar a libertação da França.”
Alegria e tristeza entrelaçadas em Sainte-Mère-Église
Foi um outro dia ensolarado e frio quando os alunos da U-M reviveram os desembarques aéreos dos Aliados em Sainte-Mère-Église, uma comunidade ao noroeste da França. Durante um briefing, um dos estudantes-cadetes explicou o que aconteceu naquela praça da igreja, onde desembarcaram 30 paraquedistas.
A área foi um local crucial na defesa da estrada para a praia de Omaha. A operação não teve sucesso; com alguns prédios pegando fogo, iluminando o céu e se tornando fáceis alvos para os homens que aterrissem ali. O fogo matou alguns; outros foram baleados ao ficarem pendurados em árvores ou postes. Mas não o pára-quedista John Steele.
Se olhar para cima ao caminhar pela pracinha da igreja, você pode ver um monumento em homenagem ao pára-quedista preso. O pára-quedas de Steele ficou preso na torre da igreja da cidade, onde ele ficou pendurado por duas horas, fingindo estar morto até que os alemães o capturaram. Ele então conseguiu escapar e voltar ao seu pelotão, que logo depois capturou e matou dezenas de alemães.
Mais eficientes, mais unidos
Assim que se formar, a aspirante da marinha Caroline Knight vai se reportar ao Comando das Escolas de Aviação Naval em Pensacola, Flórida. Ela será uma oficial de voo naval, dando suporte à navegação e operação de sistemas de armas em aeronaves da Marinha.
Para ela, essa viagem-treinamento e a chance de vivenciar quatro dias consecutivos de aprendizado na Normandia com colegas de outras forças militares propiciaram uma transição ideal da vida universitária para a militar.
“Uma área em que os soldados alemães falharam foi trabalhar em conjunto com as outras forças militares,” disse Knight. “Foi planejado; Hitler fez isso de propósito para que eles não tirassem o poder dele eventualmente. Isso nos mostra a importância de trabalharmos juntos. Interagir com a Força Aérea e o Exército tem sido muito impactante .
“A amplitude de conhecimento que todos aqui têm é incrível. Além disso, estamos onde tudo aconteceu. Não há melhor forma de aprender.”
O cadete da Força Aérea Walsh também destacou a importância de trabalhar com colegas fora de sua especialização militar e acadêmica. A experiência da Normandia não apenas reuniu membros de diferentes forças militares, mas também diversas escolas e faculdades da U-M que nem sempre podem colaborar.
“Não é algo que eu tenha feito antes, principalmente devido ao meu treinamento específico,” disse Walsh. “Nós olhamos para o que a Força Aérea pode contribuir. Mas agora, poderemos também observar o que está mudando na tecnologia, o que é preciso para ser um comandante mais completo ou para trabalhar em uma operação conjunta com o Exército, a Marinha ou o Corpo de Fuzileiros Navais.
“O objetivo do Dia D era recuperar a liberdade de um mundo dilacerado pela guerra. Um sacrifício extremo foi feito aqui, não por poder mas pelo desejo de expulsar as forças alemãs desta região e restaurar a paz. E combinando nossos serviços, podemos criar uma força armada mais útil e poderosa.”