Novo programa de transferência de renda brasileiro aposta com a vida das famílias pobres, mostra pesquisa
Luciana de Souza Leão, professora de sociologia na Universidade de Michigan, estuda políticas de transferência de renda e desigualdade em perspectiva comparada.
Sua pesquisa tem três áreas principais: 1) o papel crítico que o geração de conhecimento sobre políticas públicas desempenha na definição de como Estados elaboram, implementam e avaliam as políticas sociais; 2) os efeitos duradouros que as instituições estatais têm na reprodução das desigualdades; e 3) a desigualdade racial como uma construção ideológica e um domínio de ação.
O que sua pesquisa mostra sobre as atuais disputas sobre o fim do Programa Bolsa Família e o novo Auxílio Brasil?
Minha pesquisa mostra que, historicamente, quando os governos usam programas de combate à pobreza para atingir metas eleitorais de curto prazo, como é feito no Brasil agora, eles estão assumindo riscos às custas da vida dos pobres.
Dar dinheiro para famílias pobres, como fazia o Bolsa Família (PBF), é sempre polêmico. Em meu trabalho, mostro como os programas de transferência de renda são afetados pelos desafios específicos de legitimação que os formuladores de políticas enfrentam. Quanto mais polêmico for o contexto de implementação, mais rígidas e restritivas são as medidas adotadas pelos formuladores de políticas, que acabam excluindo dos programas as famílias em extrema pobreza.
Quando o PBF foi implementado, ele enfrentou o desafio de ser um programa que foi desenhado para ser popular e inclusivo, mas que poderia ser facilmente rotulado de populista. Para legitimá-lo na sociedade brasileira, os burocratas federais adotaram várias estratégias, muitas vezes atando as próprias mãos, para reduzir as pressões políticas em torno do programa. Como resultado, eles incluíram famílias extremamente pobres no PBF, com ganhos mensuráveis para a redução da pobreza. Infelizmente, desde o início, esse novo programa lançado pelo Governo Bolsonaro, o Auxílio Brasil (AB), foi cercado de incertezas e seu futuro se enredou em disputas políticas que nada têm a ver com a pobreza.
O que os governos devem levar em consideração ao implementar programas de transferência de renda?
Quando se trata de políticas de redução da pobreza, o ‘diabo’ mora nos detalhes da implementação. Às vezes, no debate público, nos concentramos exclusivamente nas opções de desenho das políticas, ignorando (ou minimizando) como as diferentes opções serão implementadas na prática e como os beneficiários irão experimentar essas diferentes opções. No caso do AB, o governo ainda não explicou os detalhes da implementação dos novos benefícios ou os responsáveis por sua implementação, avaliação e monitoramento. Lançar um novo programa dessa forma é um caminho para o fracasso. As famílias pobres serão as mais afetadas, pois terão que navegar por um sistema que nem mesmo os formuladores de políticas parecem entender, além de lidar com as incertezas sobre o futuro do programa.
Em sua pesquisa, você mencionou a citação: “Alimente um homem com um peixe X Ensine um homem a pescar.” Você pode explicar?
Qualquer pessoa que trabalhe com a pobreza global já ouviu o slogan: “Dê ao homem um peixe e ele se alimentará por um dia. Ensine um homem a pescar e ele se alimentará por toda a vida.” É um clichê problemático, mas parte da legitimação do PBF era seguir este mantra: dar dinheiro e combater a pobreza no curto prazo e, ao mesmo tempo, gerar incentivos para que os beneficiários enviem crianças à escola e postos de saúde, interrompendo assim a transmissão da pobreza no longo prazo. Observe, no entanto, que o PBF não estava preocupado se esse pescador estava pescando bem ou não. O AB, por outro lado, ao criar benefícios ligados à performance escolar ou nos esportes, sugere que devemos dar mais peixes para os beneficiários que pescarem bem. Na minha opinião, condicionar o recebimento de mais renda a resultados individuais é um erro. Esse tipo de condicionamento pode gerar incentivos adversos, e ignora fatores estruturais que afetam as chances de indivíduos terem bom desempenho escolar ou em esportes.
Há alguma lição do Bolsa Família para outros programas de transferência de renda e programas de bem-estar dos EUA?
Comparado a outros programas de transferência de renda em todo o mundo, o PBF era conhecido por ser incrivelmente inclusivo e por ter alcançado, pela primeira vez, populações invisíveis para o estado de maneiras criativas.
Nos Estados Unidos, em março, o Congresso aprovou o Expanded Child Tax Credit, que distribui renda para famílias de forma semelhante ao PBF. No entanto, como a principal forma de receber essas transferências é através da declaração de imposto de renda, muitas das famílias mais vulneráveis (que não declaram renda) ficam invisíveis para o governo federal americano.
No Brasil, aprendemos que a parceria com os municípios era crucial para incluir as famílias mais vulneráveis. O governo federal investiu na capacitação em nível local e recompensou financeiramente as agências locais que atualizavam de forma correta as informações de seus beneficiários. Oferecer contas bancárias gratuitas para os beneficiários também foi crucial no Brasil. Nos EUA, é importante discutir como ocorrerá a inclusão financeira das famílias, assim como quais grupos enfrentarão mais restrições com o projeto atual de transferência de renda do governo americano.
Alguma lição do programa mexicano Progresa-Oportunidades?
A principal lição para o Brasil em relação à experiência mexicana que encerrou o Progresa-Oportunidades (mais tarde também chamado de Prospera) é a necessidade de sermos muito claros sobre os objetivos de um programa de transferência de renda. Vejo as transferências de renda como uma política de redistribuição que pode impactar a pobreza “simplesmente dando dinheiro às famílias”, e que deveria servir como um primeiro passo para construir uma rede de proteção mais abrangente para as famílias pobres. No entanto, quando você começa a adicionar muitos outros objetivos aos programas de transferência de renda como o México fez, caímos na armadilha de que esperamos que uma transferência de dinheiro resolva problemas estruturais maiores que são impossíveis de resolver apenas com renda. E quando isso não acontece, é fácil eliminar esses programas.
O Auxílio Brasil segue essa mesma lógica perversa. Ao incentivar as famílias a buscar empregos com carteira assinada e doar o excedente da produção rural, por exemplo, não fica claro se o objetivo é proporcionar uma renda mínima às famílias pobres ou solucionar problemas mais significativos do mercado de trabalho brasileiro e da produção rural. Assim, corremos o risco de não fazer bem nem o essencial, que é transferir dinheiro para famílias, e também corremos o risco de seguir uma lógica de meritocracia que pode ter efeitos perversos nos esforços de redução de pobreza. Visto que o Auxílio Brasil não resolverá todos esses problemas, o risco será desqualificá-lo “como não funcionando” e eliminá-lo quando for conveniente para fins políticos.